quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Cara a cara com Deus







Vernil Eliseu – 12/05/200

A meninada gostava de nadar.

Naquele tempo, décadas de 40 e 50, os ribeirões que ladeavam a cidade, ainda, não eram poluídos.

Nas suas margens se via, ainda, lembranças da mata nativa, que aos poucos foi engolida pelo progresso.

Os poços (lugar onde o ribeirão se alargava) se prestavam à natação da meninada.

Nus, pois as margens dos ribeirões ficavam fora da vista da cidade, bandos de meninos refrescavam-se e deixavam a imaginação de crianças inventar as mais variadas brincadeiras.

Os maiores “judiavam” dos menores.

Quando se dava o último mergulho para limpar-se e voltar às suas casas, lá vinham os maiores com as mãos cheias de barro das margens e lambuzavam o garoto para não os deixar ir embora.

Às vezes, somente com o anoitecer é que se conseguia burlar a vigilância e sair correndo com as calças nas mãos para voltar para casa.

Quantas surras a meninada não levou por isso.

Com o tempo as chácaras foram sendo loteadas e as casas ficaram cada vez mais próximas do ribeirão, e muitas mães mais afoitas, arriscavam ir buscar o filho lá nas margens do ribeirão, voltando com os desobedientes puxados pela orelha.

Aos poucos, infelizmente, o santuário da meninada foi se transformando em cidade e o sonho acabou.

A história a seguir se passou quando entre a cidade e as margens dos ribeirões existiam as chácaras.

Nas caminhadas em direção ao rio, muitas vezes parávamos à sombra de frondosa árvore e nos sentávamos para jogar baralho ou, simplesmente, para conversar.

Os assuntos eram variados. Desde os papagaios (pipas) até os jogos de botões.

Muitas vezes deitados de barriga para cima, olhando em direção onde o sol nasce, a meninada ficava horas e horas contemplando o céu e as nuvens.

Os desenhos que as nuvens faziam para apreciarmos eram em grande quantidade. Leões, cobras, cabras, vacas, homens, mulheres.

Num desses dias, após uma hora de observação, um garoto dos menores, levantou-se e disse:

— Vou indo prá casa que aí vem chuva!

Imediatamente todos se levantaram e foram embora. Apenas eu fiquei.

Os desenhos nas nuvens estavam se formando rapidamente e, devido à velocidade das nuvens, iam se sucedendo encantando os meus olhos.

Absorto na admiração aos desenhos das nuvens não vi as nuvens negras rodopiando que vinham chegando, trazendo chuva.

O primeiro aviso foi um raio, que com estrondo descomunal, cortou a copa de uma árvore há uns duzentos metros lá na chácara da dona Mariquinha.

Sentei-me assustado e ao mesmo tempo a chuva desabou impiedosamente. Com duas pedradas na cabeça e meio atordoado corri para debaixo da árvore, junto ao tronco e ali passei o mais sério apuro de minha vida.

Os relâmpagos cortavam o céu escuro e os estrondos pareciam que estavam acontecendo dentro de minha cabeça.

A chuva de pedras fazia um barulho enorme e as folhas da árvore, embaixo da qual eu estava, pareciam que estavam recebendo um bombardeio e caiam esfaceladas no chão.

As pedras não me alcançavam ali junto ao tronco da árvore e eu arrisquei dar uma olhada para cima.

As nuvens negras e espessas estavam sendo sacudidas de um lado para o outro pelo vento incrivelmente forte e as faíscas pareciam sair daquele caos.

Senti-me infinitamente menor do que já era e sem saber o que fazer chorei o choro dos medrosos.

Parecia que Deus aproveitava-se da ocasião para cobrar-me por todos os meus pecados.

Chorando alto, com o coração aos pulos, lembrei-me das aulas de catecismo e agarrei-me à oração. O Pai Nosso saiu entre soluços e gritos, mas do fundo do coração.

Aí se deu o milagre.

Bem, pelo menos eu acho que foi um milagre.

As nuvens negras que não paravam de rodopiar formaram um rosto sereno e eu juro que ouvi sair dela uma voz firme e doce que disse:

— Não chores. Vá para a casa e peça desculpas à sua mãe.

O vento foi parando. As nuvens tomaram um tom mais acinzentado e parando de rodopiar começaram a caminhar, rapidamente, formando novos desenhos. Desenhos de anjos que mudavam para desenhos de harpas, outros cachorrinhos brincando, até que a chuva parou.

Saí como uma flecha e cheguei em casa em tempo recorde. Entrei ofegante e parei na porta da sala para cozinha e falei em voz alta e nunca usada.

— Mãe me desculpa tá.

Minha mãe, que passava um café cheiroso para a gente tomar, comendo um virado de bananas com farinha de milho, que já estava fatiado sobre a mesa, olhou-me espantada, sem entender o que estava acontecendo, falou:

— Me deixa ver se você está com febre!

 

 

 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

O Banquete dos Deuses



29/08/2021

vernileliseu@gmail.com

vernileliseu.blogspot.com

 

A dona Escalina, uma senhora negra, alta, bonita, esposa do seu Zé Fumaça, comandava a garotada da rua 13 de maio.

Os iças, parecia, que nasciam do chão e com voos inseguros povoavam os ares da rua.

A garotada (naquele tempo molecada) arrancavam as camisas e começavam a caçada aos iças.

Dona Escalina, sem pressa, ia recebendo o produto das caçadas de cada um dos garotos, cujos olhos brilhavam, pensando no banquete de logo mais.

Para muitos dos garotos aquele banquete que se anunciava era, nada mais nada menos, que a mistura que comeriam naquela tarde.

O número de garotos era de mais de 10, com suas camisas espanando o ar e derrubando os iças, gordinhos e de sabor gostoso.

Da empreitada participavam, também, a Amélia e a Zezé, filhas adotivas de dona Escalina, cujo nome verdadeiro não tenho a certeza se era este.

A caçada era incansável e o produto de tantas “camisadas”, quase sempre enchia uma bacia, tão usadas naquela época (fim da década de 40 e início da década de 50).

A dona Escalina e suas filhas, começavam a preparação para aprontar os iças.

A parte usada era o bum-bum dos iças, gordinhos e de recheio abundante.

As vezes o Iça ia pra chapa quente inteiro.

Na verdade, os garotos sentavam se ao redor da bacia e começavam a degustação prolongada dos iças torradinhos.

Se inteiro separavam o bum bum do resto.

Era uma verdadeira festa, cujo costume, desapareceu na poeira do tempo.

Hoje dificilmente se vê um iça voando no ar da cidade e, por isso, os garotos de hoje, infelizmente não vão conhecer o banquete igual ao que a Dona Escalina proporcionava para todos os garotos da rua e adjacências.

Dona Escalina impunha respeito com a sua altura sem, entretanto, erguer a voz para chamar a atenção dos garotos.

Um tempo de coisas bonitas, mesmo que estranhas para os dias de hoje mas, de grande congraçamento dos vizinhos da rua 13 de Maio.