A meninada gostava de nadar.
Naquele tempo, décadas de 40 e
50, os ribeirões que ladeavam a cidade, ainda, não eram poluídos.
Nas suas margens se via, ainda,
lembranças da mata nativa, que aos poucos foi engolida pelo progresso.
Os poços (lugar onde o ribeirão
se alargava) se prestavam à natação da meninada.
Nus, pois as margens dos
ribeirões ficavam fora da vista da cidade, bandos de meninos refrescavam-se e
deixavam a imaginação de crianças inventar as mais variadas brincadeiras.
Os maiores “judiavam” dos
menores.
Quando se dava o último mergulho
para limpar-se e voltar às suas casas, lá vinham os maiores com as mãos cheias
de barro das margens e lambuzavam o garoto para não os deixar ir embora.
Às vezes, somente com o anoitecer
é que se conseguia burlar a vigilância e sair correndo com as calças nas mãos
para voltar para casa.
Quantas surras a meninada não
levou por isso.
Com o tempo as chácaras foram
sendo loteadas e as casas ficaram cada vez mais próximas do ribeirão, e muitas
mães mais afoitas, arriscavam ir buscar o filho lá nas margens do ribeirão,
voltando com os desobedientes puxados pela orelha.
Aos poucos, infelizmente, o
santuário da meninada foi se transformando em cidade e o sonho acabou.
A história a seguir se passou
quando entre a cidade e as margens dos ribeirões existiam as chácaras.
Nas caminhadas em direção ao rio,
muitas vezes parávamos à sombra de frondosa árvore e nos sentávamos para jogar
baralho ou, simplesmente, para conversar.
Os assuntos eram variados. Desde
os papagaios (pipas) até os jogos de botões.
Muitas vezes deitados de barriga
para cima, olhando em direção onde o sol nasce, a meninada ficava horas e horas
contemplando o céu e as nuvens.
Os desenhos que as nuvens faziam
para apreciarmos eram em grande quantidade. Leões, cobras, cabras, vacas,
homens, mulheres.
Num desses dias, após uma hora de
observação, um garoto dos menores, levantou-se e disse:
— Vou indo prá casa que aí vem
chuva!
Imediatamente todos se levantaram
e foram embora. Apenas eu fiquei.
Os desenhos nas nuvens estavam se
formando rapidamente e, devido à velocidade das nuvens, iam se sucedendo
encantando os meus olhos.
Absorto na admiração aos desenhos
das nuvens não vi as nuvens negras rodopiando que vinham chegando, trazendo
chuva.
O primeiro aviso foi um raio, que
com estrondo descomunal, cortou a copa de uma árvore há uns duzentos metros lá
na chácara da dona Mariquinha.
Sentei-me assustado e ao mesmo
tempo a chuva desabou impiedosamente. Com duas pedradas na cabeça e meio
atordoado corri para debaixo da árvore, junto ao tronco e ali passei o mais
sério apuro de minha vida.
Os relâmpagos cortavam o céu
escuro e os estrondos pareciam que estavam acontecendo dentro de minha cabeça.
A chuva de pedras fazia um
barulho enorme e as folhas da árvore, embaixo da qual eu estava, pareciam que
estavam recebendo um bombardeio e caiam esfaceladas no chão.
As pedras não me alcançavam ali
junto ao tronco da árvore e eu arrisquei dar uma olhada para cima.
As nuvens negras e espessas
estavam sendo sacudidas de um lado para o outro pelo vento incrivelmente forte
e as faíscas pareciam sair daquele caos.
Senti-me infinitamente menor do
que já era e sem saber o que fazer chorei o choro dos medrosos.
Parecia que Deus aproveitava-se
da ocasião para cobrar-me por todos os meus pecados.
Chorando alto, com o coração aos
pulos, lembrei-me das aulas de catecismo e agarrei-me à oração. O Pai Nosso
saiu entre soluços e gritos, mas do fundo do coração.
Aí se deu o milagre.
Bem, pelo menos eu acho que foi
um milagre.
As nuvens negras que não paravam
de rodopiar formaram um rosto sereno e eu juro que ouvi sair dela uma voz firme
e doce que disse:
— Não chores. Vá para a casa e
peça desculpas à sua mãe.
O vento foi parando. As nuvens tomaram
um tom mais acinzentado e parando de rodopiar começaram a caminhar,
rapidamente, formando novos desenhos. Desenhos de anjos que mudavam para
desenhos de harpas, outros cachorrinhos brincando, até que a chuva parou.
Saí como uma flecha e cheguei em
casa em tempo recorde. Entrei ofegante e parei na porta da sala para cozinha e
falei em voz alta e nunca usada.
— Mãe me desculpa tá.
Minha mãe, que passava um café
cheiroso para a gente tomar, comendo um virado de bananas com farinha de milho,
que já estava fatiado sobre a mesa, olhou-me espantada, sem entender o que
estava acontecendo, falou:
— Me deixa ver se você está com
febre!