sexta-feira, 26 de junho de 2009

A Cebola rolando

A Cebola veio rolando pelo chão.

Coisa corriqueira em um Supermercado.

Despertou a nossa atenção, pois, a imagem nos pareceu de um ser que deslocado, desolado, esquecido, ridicularizado e evitado, merecia, de nós seres humanos, uma valorização que nem o seu preço de quilo alcançava.

O primeiro carrinho, conduzido por moderna dona de casa, com seu costume jeans curto, à mostra pernas roliças e sadias em cujo ápice sustentava o bumbum bem feito, evidenciando o uso de algum artifício de enchimento, foi freado e por pouco não esmigalhava a Cebola que, indiferente, continuava sua trajetória trágica.

O rosto da condutora do carrinho contraiu-se, deixando que o desdém tomasse conta de sua representação teatral.

Um marido desgarrado, tentando repetir os nomes dos produtos que a mulher recomendara para comprar, com os óculos na ponta do nariz, deu um salto e se reequilibrou evitando com a manobra que a Cebola passasse por cima de seus pés acomodados em sapatos acolchoados.

O garotinho que se especializara em derrubar produtos das prateleiras do “hiper” parou e com muito espanto gritou:

— Olhem a Cebola rolando!

Na seqüência, correu em direção ao carrinho de compra da mãe para lhe contar a novidade, sem desconfiar que o seu grito havia chamado a atenção do povaréu que estava comprando mais do que devia, naquela tarde chuvosa.

Se a Cebola pensasse e aquela por certo pensava, estaria apavorada pelo alvoroço causado pela sua incursão não planejada pelo chão do “hiper” e querendo que o seu impulso indesejado acabasse bem debaixo de alguma prateleira salvadora.

Com alguma sorte, talvez, quem sabe, não seria esquecida pelas cerdas das vassouras da limpeza e pudesse, ali mesmo, brotar para dar origem à nova vida para o mundo das Cebolas. Ou por outra, quem sabe alguma senhora perfumada, de bondoso coração, não a pegasse e destinasse a ela a prateleira da despensa de uma mansão.

Eram conjecturas a serem levadas em consideração.

Afinal ela uma Cebola bonita, tinha o direito de sonhar o melhor para si.

Não seria aquela “corrida” provocada pelas mãos desatenciosas e trêmulas de uma velhinha que haveria de mudar o sentido da sua vida. O seu destino não poderia estar atrelado somente a um prato saboroso.

A rapidez dos seus pensamentos, no entanto, não conseguiu ser tão rápido quanto o atencioso rapaz de costume cinza com letrinhas vermelhas que, como um raio, passou por nós e pegou a Cebola e recolocou-a na banca de onde ela saíra rolando.

terça-feira, 23 de junho de 2009

A comodidade de trilhar caminhos feitos


O sol levantou-se mais cedo naquela manhã.
A luz visitava todos os cantos, pondo à mostra a beleza da criação de Deus.
Abri a porta e o meu corpo arrepiou-se todo. Engraçado como não havia percebido isso antes.
Sempre quando abria a porta para sair para o trabalho, sentia aquele arrepio. Acredito que nessas manhãs luminosas as energias positivas ao tomarem contato com o meu corpo produziam o arrepio. Na verdade, especialmente naquela manhã, a minha disposição estava multiplicada.
Era como se eu fosse as lentes de uma gravadora de vídeo. Não havia no campo da minha visão nada que não estivesse sendo registrado pelo meu cérebro. Parecia até que algum perigo iminente jogara adrenalina no meu sangue e os meus sentidos estavam em estado de alerta.
- Bom dia dona rosa - disse cumprimentando a flor do meu jardim – que o meu amor seja tão grande quanto é a sua beleza.
Juro que ouvi o seu riso imperceptível.
Aprendi há muito tempo, quando ainda era um mal informado, que as flores riem e conversam com os seres humanos e para que isso aconteça depende dos seres humanos, pois as flores estão sempre dispostas a conversar.
Estiquei a mão para a maçaneta do meu carro e ouvi uma voz melodiosa e clara:
- Acordou bem disposto hoje, senhor?
Olhei para trás e como não vi ninguém, fiquei como que parado no ar.
- Sou eu quem está falando, aqui quase tocando o chão.
Firmei os olhos e vi uma rosa amarela, com as pétalas como se estivessem por cair, mais amarelas nas partes internas e desbotadas nas partes externas.
- Sou eu mesmo. Não fique assustado. Só quero transmitir-lhe uma mensagem: Evite com todas as suas forças “a comodidade de trilhar caminhos feitos”.
- Está bem. Mas porque para mim esta mensagem?
O vento balançou a roseira e uma das pétalas da rosa, a que estava com aparência de queimada, soltou-se e caiu. O silêncio era total.
- Porque para mim a mensagem? Insisti.
Um vizinho que passava, andando pelo meio da rua, olhou curioso e deve Ter pensado que eu estava ficando louco e falando sozinho.
Sacudi a cabeça energicamente e fui para o trabalho.
Realmente a minha disposição era de causar inveja a qualquer garoto de 18 anos. O joelho incomodava um pouco, mas não impedia o andar reto e firme. Aliás, era e ainda é motivo de orgulho o meu “preparo físico”. Salvo, evidentemente, observações mais apuradas.
O salão de iluminação lateral estava movimentado àquela hora da manhã, cada um por sua vez recebia os que chegavam com um Bom dia quase que musical e com sorrisos.
Ouvi, enquanto ligava o computador, a jornalista dizendo ao redator que mais uma casa de recuperação de drogados estava sendo inaugurada naquela semana e como que um estalo a frase da rosa do jardim lá de casa soou na minha cabeça.
- Espera aí. Como é o negócio? Perguntei.
- Uma dessas clínicas para internação de drogados para afastá-los da rua e recuperá-los da dependência. Respondeu a jornalista.
- Então é isso – comecei a falar – A comodidade de trilhar caminhos feitos é isso aí. O número de drogados aumenta e a sociedade aumenta as casas destinadas à recuperação deles. No entanto, após o período de desintoxicação, os ex-drogados retornam ao convívio dos seus amigos, no seu bairro, sem que os problemas que o levaram a se drogar tenham sido resolvidos e daí para o retorno ao uso das drogas, novamente, é um pulo. As notícias dão conta que os que se curam são, aproximadamente, 3 a 5%. É muito pouco. Na realidade, a sociedade que criamos não quer dar-se ao trabalho de cobrar os que têm obrigação de resolver os problemas, prendendo os traficantes de drogas. Impedindo que por qualquer problema que os nossos filhos tenham, encontrem na oferta das drogas as soluções para as suas aflições.
Por melhor que seja o relacionamento humano, os atritos, as divergências, a oposição, sempre existirão. Isto é inclusive uma necessidade que impulsiona o homem em busca das soluções dos seus problemas, muitas das vezes, pela sua natureza, exigindo certo desprendimento. Alguns que imaginam estarem sendo muito exigidos encontram fácil por aí, a sedução dos traficantes, estendendo enganosamente uma solução que, hoje alivia, mas que amanhã multiplica o sofrimento. Então, é absolutamente verdadeiro afirmar que somente acabando com tráfico, a sociedade poderá salvar estes seus componentes, de um destino pior.
- Qualquer outra coisa que se invente será apenas paliativo e incentivo à comodidade de trilhar caminhos feitos.
Cidadãos, prefeito, vereadores, juizes, promotores, presidentes de associações de bairros, presidentes de clubes sociais, etc., devem cobrar os que têm por obrigação combaterem o tráfico de drogas.
Mas eles não têm recursos.
Então que sejam cobrados os responsáveis pelos recursos. É difícil e perigoso. Mas se a sociedade não entender que a necessidade desta soma de esforços é a salvação, ela, por comodidade de trilhar caminhos feitos, verá dentro de cada lar da sua comunidade, entrar pela porta da frente e com pompa, o mal que tira dos homens a vontade de viver.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A presença de Anita

Com a raquete na mão, corria os dedos pelo encordoamento como se tivesse procurando os motivos pelos seus fiascos dentro da quadra, ignorando os malefícios da proeminente barriga que, por certo, era a grande vilã do jogo de tênis. Respirou fundo e quase que num sussurro, falou para os companheiros das aventuras esportivas.
— Vocês viram a presença de Anita?
Como que por encanto os quatro ou cinco “atletas” que compunham o grupo viraram vigorosamente as suas cabeças em direção a Célio.
Eu vi, vi não, bebi. Eu também.
E assim, sucessivamente, todos mostraram que a minissérie estava sendo vista e bebida pelos homens.
Os únicos que não se pronunciaram foram os quatro “tenistas” que estavam jogando e que por sinal, atrapalharam a conversação do grupo, pois uma bola desviada foi bater na cabeça de um dos mais ardentes fãs de Anita.
Bola devolvida, conversa continuou.
Tirando os olhos da raquete, Célio confessou:
— Para mim não está fácil acompanhar a novela. Minha mulher está marcando em cima. Por isso, sou obrigado a emitir minhas opiniões para ela ouvir, pela voz e sentir as verdadeiras emoções ocultadas pela escuridão que nos obriga o programa de racionamento de energia.
— Não entendi patavina. Emendou João, expressando a curiosidade do grupo.
— Explico. Aquelas cenas de Anita com o escritor, na casa dela, quentes, que faz a gente ficar ofegante e balançando as pernas, sentado no sofá da sala, eu comento em voz alta:
— Puxa! Que moça desclassificada, está estragando a vida do homem e a coitada da mulher dele nem desconfia de nada.
— Na escuridão, no entanto, deixo as cenas embalar as minhas fantasias. O corpo jovem da menina embaralha as mazelas da idade e garante uma noite cheia de fogos de artifícios.
Armando, o mais sisudo dos amigos, com cara de quem viu e não gostou, colocou areia na conversa:
— Tá certo que ela é artista, mas acho uma exploração da TV em cima de uma moça que deveria estar estudando, para não depender de ninguém no futuro, em vez de estar com sua atuação revirando a cabeça dos homens.
A rodinha foi desfeita. O bem e o mal, mais uma vez, afrontavam os homens. Sem dar a pista de qual era um e o outro.
Está certo o homem que não expressa as suas reações e revive os seus melhores momentos nos braços de sua mulher?
Ou está certo o outro que se preocupa com, segundo ele, a exploração do corpo de uma jovem?
Como descobrir quem está mais certo. De real só o celular do Célio que tocou insistentemente:
Prestem atenção no diálogo que se seguiu:
— Célio é a Margarida (mulher dele), eu gravei o episódio de ontem da Presença de Anita, aquele que ela está deitada na bóia na piscina e arruma bikini com o dedo, se você estiver a fim de ver de novo venha logo para casa.
— Guenta um pouco que eu já estou indo.

sábado, 6 de junho de 2009

O tempo passa...

Três ou quatro Joãos de Barro saudavam-se escandalosamente no fio pertinho do poste. Havia pouco que o vendaval que se abatera sobre a cidade amainara e alguns teimosos raios de sol se esgueiravam por entre as nuvens apressadas.
A tarde de sábado apesar de toda a chuva que caíra era calorenta.
Dona Maria de sua área ao ver sua amiga que passava anunciou:
-Ô Teresa! O Natal já esta aí novamente.
Dona Teresa sem querer parar, mas já parando, concordou com a amiga:
Parece que foi ontem mesmo e eis que já estamos quase nele outra vez.
-Fazer o que, né Dona Maria. O tempo voa e nós ficamos cada vez mais velhas.
-É mesmo Dona Teresa. Mas o que me entristece é saber que neste ano mais pessoas estão sem trabalho e, muitas delas, já perdendo a dignidade.
-Sem falar nas guerras que andam ceifando vidas e as matanças nas grandes cidades do nosso país.
-É verdade. Tenho imaginado Dona Maria, que isso tudo não vai nos levar para um bom lugar.
-Algum tempo atrás tantas pessoas se ocupavam de distribuir, roupa, presentes, comida para os menos favorecidos.
-Ontem os menos favorecidos, cujo número aumentou, saíram a pedir para os mais favorecidos.
-Hoje estamos assistindo os menos favorecidos pela sorte e embrutecidos pela necessidade, arrancarem dos mais favorecidos aquilo que precisam e mais alguma coisa, quando não lhes arrancam a vida.
-Amanhã, pelo andar da carruagem, os menos favorecidos vão querer ser os mais favorecidos e, então, ninguém sabe no que vai dar a violência do confronto.
-Calma Dona Teresa. Deus há de colocar um paradeiro nesta convivência insana. E tem mais, muitos e muitos homens e mulheres, que não aparecem na televisão e nem nos jornais, estão disseminando a compreensão, o amor.
-Para mim, Dona Teresa, o bem vai triunfar.
O bando de Joãos de Barro depois de mais uma rodada de barulhentas saudações, alçou vôo e o silêncio dominou a cena.
-Tchau! Dona Maria, foi se despedindo a amiga Teresa.
Dona Maria com o olhar perdido no horizonte iluminado pelos “coriscos” pensou quase alto:
-Como explicar tantos contrastes. De um lado os pássaros com seus barulhentos cumprimentos, os sorrisos das crianças e, do outro lado, o troar das armas nas mãos dos dignos de dó, trovejando a morte.