segunda-feira, 20 de abril de 2009

Amar ao Próximo


O nosso senhor foi para a cama pensando naquilo que havia visto na televisão.
ºººO que seria aquilo que a mãe daqueles garotos havia dado para eles comerem. Com certeza era algum tipo de palha, pois não matou a fome dos coitados. Ou seria aquela planta que mais parece uma orelha cheia de espinhos. Pelo que eu sei - prosseguia pensando - aquela planta serve para benzimentos, principalmente, da coluna vertebral, esporões, bicos de papagaio, etc. Muita gente já foi curada pelo benzimento, mas matar a fome nunca havia escutado falar.
ºººA última vez que desconfiei da televisão foi quando da primeira viagem do homem à Lua. Tá certo que depois tive de aceitar, mas caramba será que a gente é obrigada a acreditar em tudo?
Aos poucos um aquecimento gostoso tomou conta de seu corpo e ele caiu nos braços de Morfeu. Dormiu o sono daqueles, cujo estômago cheio, não deixava saber, nem de perto, o que era passar fome. Não ter o que comer.
Contudo, não há ignorância, por mais enraizada que esteja que dure a eternidade.
De repente ele se viu em pleno sertão nordestino. Umas plantas que se assemelhavam ao cacto, com alguns daqueles braços espinhosos cortados, desafiando o Sol e a poeira. Esticou o pescoço e ao longe viu uma casinha com a chaminé soltando fumaça.
Olhou para os seus pés e estranhou as sandálias de couro esbranquiçado, um tanto velhas e passou o dedo entre um nó e a sua pele para aliviar a pressão que já começava a doer. Começou a andar em direção à casa. Sua mente estava vazia e apenas uma força estranha o impelia naquela direção.
Já se avizinhava do cercado e começou a ouvir o choro de criança, no princípio longe, mas a medida que se aproximava, era estridente e incomodava.
— O boa tarde saiu da profundeza de sua alma sem que ele fizesse força para cumprimentar a senhora, sentada à sombra da pingadeira do telhado.
— Como boa tarde, moço? – respondeu perguntando a senhora com cara de poucos amigos – e continuando:
— Há duas semanas que os meus filhos estão comendo o pão que o diabo amassou, isto é, se tivessem o pão que o diabo amassou para comer até que seria uma boa, estão comendo é casca desta planta espinhenta, nem mesmo cozinhá-las posso, não há água. Eu já estou pensando seriamente em começar a comer os calangos e escorpiões que passarem por aqui.
Ao ouvir a mulher, tomou um choque e aquele marasmo mental se desfez. Pensou:
ºººMas então era verdade aquilo que vira na televisão.
Uma voz grave e bem timbrada, daquelas usadas para gravar trechos da bíblia, vindo não se sabe de onde, disse-lhe:
— Mas é claro brasileiro. Será que você nunca vai abrir estes teus olhos que a terra vai comer?
Uma friagem subiu dos calcanhares até a parte mais sensível e ele começou a suar frio, apesar do calor.
O Nosso senhor era um homem pertencente à classe média do Estado de São Paulo e era um homem que se orgulhava da sua inteligência, mesmo que de vez em quando ela o levasse a duvidar das noticias da televisão.
Soltou um suspiro e entrou em transe.
Na sua mente passou os nomes da Sudene, Sudam. Os benefícios que para os que iam pagar imposto de renda. Lembrou-se dos homens ricos daquela região, sem nunca terem uma produção para creditar o aumento da riqueza.
Lembrou-se, também, das campanhas, inúmeras, para angariar alimentos para os nossos irmãos do nordeste. A raiva subiu em seu rosto, quando em sua mente desfilou um cem número de vezes que o governo dizia estar mandando dinheiro para acabar com a seca.
O fato, no entanto, é que em mais uma viagem astral, ele acabara de ver como os seus olhos que esta terra vai comer a miséria em que está mergulhado o nosso nordeste brasileiro.
Aquele casebre que visitara era apenas o exemplo de uma imensidão de outros onde a mãe, pai e filhos, estão passando fome.
As noticias de saques para buscar nos armazéns a comida para matar a fome eram verdades. Ele que no princípio condenara, agora não podia mais fazê-lo.
Não enquanto os espertos senhores, coronéis, políticos e latifundiários, lá daquelas bandas continuarem tendo acesso à água, ao arroz, ao feijão, à carne e ao conforto, em detrimento destes escravos, que recebem o mais duro castigo – passar fome – apesar de toda a boa vontade de trabalhar.
O nosso senhor pensou mais profundamente:
ºººComo um governo legalmente constituído, pode permitir que isto aconteça. É claro que a culpa não é só deste governo. Todos os outros anteriores deviam ser chamados a prestar contas do que fizeram para tirar o nordeste desta situação. Para onde foram as remessas dos valores que foram destinados para este fim. Acho que o certo é dizer: Com quem está o dinheiro.
Acho difícil achar, mas, com certeza, uma grande parte está nas avenidas à beira mar no Rio de Janeiro e em algumas mansões em Miami.
A indústria da seca tem que acabar, não é justo tantas crianças passarem fome e poucos, com os bolsos recheados, estarem estudando na França.
Para isto é necessário apenas um governo cuja moralidade seja o seu lema.
Dizer-se moral, é muito fácil, a necessidade é transformar a moralidade em atos morais, o que já é mais difícil. Nada, no entanto, que seja para super homens, apenas amar o próximo e a coragem são indispensáveis.
O nosso senhor estava ofegante, apesar de só ter pensado. Levantou os seus olhos e viu no horizonte o sol nascendo. Beleza indescritível. Um leve tremor marcou a volta do seu espírito ao corpo. Ele acordou e o silêncio fez-lhe companhia. Chorou silenciosamente para não acordar a esposa, pois no outro dia, pela manhã, ela iria trabalhar.
Graças a Deus ela tem um emprego




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