quinta-feira, 10 de julho de 2008

Antes tarde do que nunca


O sucesso de Rita Pavoni, estridentemente, jorrava do rádio e o senhor deixou que a sua mente o levasse de volta à sua juventude.
As suas lembranças levaram-no a vários lugares, onde com singular energia ele havia dado vazão aos seus desejos.
O salão do clube que ele freqüentava, pequeno e sufocante no tempo do calor, apareceu-lhe na mente nitidamente. As cortinas de cor indefinida, as mesas pequenas, as cadeiras, as pilastras que atrapalhavam os passos mais audaciosos, o bar acanhado com as garrafas de Fogo Paulista empoeiradas equilibradas nas prateleiras, o vozerio.
Como que por milagre, o som do piston em surdina encheu as suas lembranças com as músicas. Os boleros e sambas canções que embalavam as paixões e deixavam todos os pares de olhos brilhantes como que acreditando na perinidade daquele momento.
Em dado momento, não só sentiu o corpo da moça colado no seu corpo, como também sentiu o seu perfume. Rodava e ao mesmo tempo seus pés flutuavam nos passos combinados, lentos e com leve requebrado, que aceleravam as batidas do coração e a sua respiração.
Se pudesse, como quase aconteceu no filme “Em algum lugar do passado”, ficaria no seu passado, mais atencioso às coisas bonitas que aconteceram e que ele não havia percebido o seu real valor.
A mocidade, o clube, o baile, a música, a moça, o seu corpo, o seu perfume, embalavam aqueles momentos de recordação.
O barulho das panelas no fogão trouxe-no de volta. Sua mulher apareceu na porta da cozinha para a sala e perguntou:
— Posso fritar o bife?
— Claro, eu tô morrendo de fome. Respondeu levantando-se e indo na direção ao banheiro para lavar as mãos para almoçar.
Não era um almoço que pudesse gabar-se pela quantidade de pratos, mas era uma comida bem feita e cheirosa e na medida que suportava o seu aparelho digestivo.
Abriu a torneira e olhando no espelho surpreendeu-se com as imagens nele contidas. Eram a dele e da sua mulher quando ainda jovem, antes do casamento, no período de namoro. Era bonita e de sorriso fácil.
— Tá na mesa.
— Sacudiu a cabeça e foi almoçar.
Silenciosamente prestou atenção à sua mulher. Ainda era bonita. O que será que ela tinha visto nele, o suficiente para agüentá-lo tantos anos.
Analisando, foi relembrando os momentos vividos desde o seu casamento. Foram momentos felizes, momentos infelizes, momentos de segurança, momentos de insegurança, momentos de pavor, momentos de brigas, momentos de paz.
Dissera tantas bobagens e ouvira outras tantas. Momentos em que ficar em silêncio teria sido melhor e momentos que deveria falar substituídos por silêncios de omissão.
Engraçado como a nossa vida é feita de comportamentos extremos e às vezes inexplicáveis.
Mas, em sã consciência podia dizer que o amor estivera sempre presente.
Na luta entre os desejos e as renúncias o velho e divino amor saíra mais uma vez vitorioso.
— Vou dar um pulo lá na padaria. Falou levantando-se depois de tomar uma xícara de café.
— Aproveita e traga uns seis pães. Recomendou a mulher.
Saiu assobiando e prestando atenção ao tempo. Mais tarde deve chover, pensou.
Passou por uma casa, já perto da padaria, e sem querer pôde ouvir a discussão.
— Estou cansada de trabalhar, é a comida, roupa para lavar, limpar a casa e no fim de semana nada de descanso e vocês de papo pro ar vendo futebol na televisão. Assim não dá.
Assobiou mais alto e pensou:
ººº Em todas as casas as briguinhas são as mesmas.
Não sabe como e nem por quanto tempo, foi para um determinado lugar do passado. O bolero “Sabor A Mi” era a música e ele dançava como nunca havia dançado. A moça segurava de leve a sua cabeça e encostava levemente o seu rosto no seu. Os olhos semi cerrados não viam nada. Só dois em um, como se o ambiente tivesse destacado aquela imagem para aparecer. Momento mágico do encontro de duas metades para viverem a eternidade.
— Só tinha pão de sal.
Sentou-se na sala recostado no sofá e de olhos fechados analisava aquele momento de seu passado.
ººº Como eu mudei, não tenho mais momentos de romantismo e de carinhos. No entanto hoje minha mulher parece-me mais importante. Divido com ela as minhas decisões, juntos administramos a casa e as nossas vidas. Os sentimentos parecem-me purificados. Confio. Os gestos foram substituídos pela conjugação das nossas mentes. Eu sei o que ela quer e ela sabe o que eu quero. Entre nós o amor é e não precisa ser representado. Mas e as brigas?
— Caramba e as brigas?
— Só podem ser as manifestações do nosso amor que, descuidadamente, deixamos acumular e quando vêm à tona explodem e nós ainda não aprendemos a dominar.
— Fala alto que eu não estou escutando. Grita a mulher lá da cozinha.
— Nada não. Ele respondeu.
E voltou a pensar baixo.
ººº Acho melhor voltar a analisar estes pormenores de minha vida, com seriedade, na primeira oportunidade, o melhor agora é prestar atenção no jogo que está começando pela televisão.
O São Paulo, através do Denilson, espetou um gol no seu querido Palmeiras e ele sentiu o sangue ferver e subir. A pontada doida no lado esquerdo deixou-o sem sentidos.
Foi uma correria só.
— Dá álcool num algodão para ele cheirar.
— Esfregue os pulsos com vinagre.
— Faça uma cruz com água no peito.
A ambulância chegou e levou-o para o hospital, aonde veio a falecer.
Chegou lá em cima sacudindo aquilo que ele julgava ser a cinza do cigarro que estava fumando quando adveio o infarto.
Em pé, bem ao lado daquela espécie de cama, todo de branco e aparentando uma calma incrível, um senhor de barbas ralas e brancas, dirigiu-se a ele com voz doce.
— O senhor é um homem de muitas idéias, mas infelizmente, de pouca ação. Tivemos o trabalho incrível de fazê-lo relembrar os seus melhores momentos com a sua esposa e, mesmo assim, você não dirigiu-lhe nenhuma palavra de reconhecimento. Isto é egoísmo, meu filho. Por isso, trate de levantar-se e começar desde já um programa de treinamento, para retornar ao planeta Terra e como um marido dominado pela mulher pagar pelo seu egoísmo. E, por favor, não se esqueça de dizer a esta outra mulher com quem você vai se casar nesta outra vida, que você a ama e, é claro, não erga a sua voz.

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